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FUMAÇA DAS QUEIMADAS NOS CANAVIAIS SOBRE A SAÚDE- (Portal UNESP)

Fotos queimadas canaviais município de José Bonifácio-SP 















FUMAÇA SOBRE A SAÚDE  [ n. 198/março 2005]
As queimadas nas plantações de cana-de-açúcar são uma prática comum no País. Estudos feitos em dois campi da UNESP assinalam os riscos que substâncias contidas na fumaça lançada no ar por esse processo representam para os trabalhadores do setor e a população em geral.

Julio Zanella

A queimada nas plantações de cana-de-açúcar está lançando nos céus substâncias que, além de comprometer a qualidade do ar, podem originar sérias conseqüências para a saúde da população, em especial os trabalhadores envolvidos nesse processo. A prática da queimada é bastante comum na colheita dessa cultura no Estado de São Paulo, o maior produtor do País, com 60% da safra nacional.

Duas pesquisas recentemente concluídas por equipes dos campi de Araraquara e São José do Rio Preto apontam para os riscos da liberação, pelas chamas que atingem os canaviais, de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos – os HPAs.
Investigações internacionais comprovaram que 16 variedades dessas substâncias têm um comprovado potencial mutagênico, ou seja, provocam mutações genéticas que podem levar ao aparecimento de câncer.

Um trabalho coordenado pela docente do Instituto de Química (IQ) da UNESP, campus de Araraquara, Mary Rosa Marchi detectou um grande volume desses hidrocarbonetos em amostras de poeira em suspensão no ar do município, no período das queimadas. No estudo que realizou para sua tese de doutorado, recentemente defendida no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da UNESP, campus de São José do Rio Preto, Rosa Maria do Valle Bosso constatou quantidades alarmantes de HPAs na urina de cortadores de cana.

No caso do grupo de Mary, as substâncias foram detectadas por um equipamento apropriado para a coleta de partículas inaláveis com diâmetro menor do que 10 mícrons (unidade de medida que equivale à milionésima parte do metro). O sistema foi instalado a uma altura de cerca de 7 m do solo, no terreno do IQ, situado a aproximadamente 5 km dos canaviais e a 10 km do centro da cidade. Foram colhidas 40 amostras durante duas safras de cana-de-açúcar do período maio-novembro e duas entressafras, entre dezembro e abril, abrangendo os anos de 2002 a 2004.


A região de Araraquara é responsável por 10% da produção de cana-de-açúcar do Estado. As grandes áreas de plantação ficam a aproximadamente 5 km da cidade. Mas o problema não se restringe ao município, já que a cultura é disseminada em praticamente todas as regiões paulistas. “Estudos indicam que partículas finas, como as estudadas neste trabalho, podem viajar até 40 km, o que torna o problema ainda mais preocupante”, diz a pesquisadora.

A concentração da poeira inalável foi medida em microgramas (µ – unidade correspondente a 1 milionésimo de grama) por metro cúbico de ar (m3). Foi detectada a média de 82,1 µ/m3 de ar na safra, volume quatro vezes maior do que na entressafra (20,5 µ/m3), embora ainda esteja dentro dos critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para a qualidade do ar, que prevêem uma concentração máxima de 150 µ/m3 num período de 24 horas, que não pode ser excedida mais de uma vez por ano. Já no caso dos HPAs, as concentrações na fase de colheita foram sempre bastante superiores às do outro período avaliado.

Uma dessas substâncias, o fenantreno, apresentou níveis nove vezes maiores do que em outras fases do ano. “Como as amostras das épocas de safra e entressafra foram coletadas exatamente no mesmo local, pode-se inferir que a fonte mais importante para o aumento de partículas e HPAs no ar seja realmente a queimada de cana-de-açúcar”, diz Mary. A pesquisadora salienta que foram colhidas apenas partículas finas, material microscópico que não está relacionado com a poeira comum na época de menor volume de chuvas. “Portanto, a exposição potencial dos indivíduos a partículas finas e HPAs deve ser também maior durante a safra”, enfatiza.

O trabalho inclui ainda as análises e ensaios de laboratório, como o teste de mutagenicidade – para avaliar as mudanças que os produtos colhidos provocam sobre o material genético –, que foi realizado com exemplares da bactéria Salmonella typhimurium. Segundo Mary, os ensaios foram efetuados através de métodos preconizados internacionalmente, adaptados e validados nos laboratórios do IQ e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF), também do campus de Araraquara. A coleta de amostras seguiu procedimento recomendado pela U.S. EPA – Agência Americana de Proteção Ambiental.

Nos testes com as bactérias, o material colhido durante a safra apresentou em média potencial mutagênico até 10 vezes maior do que o da entressafra. “No entanto, a avaliação mais precisa da dimensão do risco que essas conclusões podem representar para a saúde humana, incluindo o câncer, ainda demanda estudos mais detalhados e multidisciplinares, envolvendo pesquisadores das áreas de Química, Biologia e Saúde”, ressalva a pesquisadora.

As áreas do corpo humano potencialmente mais afetadas pela inalação das partículas e HPAs são a boca, o aparelho respiratório e digestivo. Embora não haja ainda estudos epidemiológicos a respeito, suspeita-se que os casos de câncer poderiam estar também associados ao meio de vida dos trabalhadores, que sofrem ainda com alcoolismo, tabagismo e uso de drogas. A transpiração provocada pelo calor no local da queimada e roupas consideradas inadequadas para essa atividade acentuam a intensidade da exposição.

No estudo que rea-lizou no Ibilce, Rosa Maria analisou a urina de cortadores não-fumantes da região de São José do Rio Preto. A escolha desse perfil de grupo pesquisado se deve ao fato de que o consumo de cigarros também acarreta a ingestão de HPAs. “Procuramos medir a quantidade dessas substâncias excretada e a sua mutagenicidade”, diz a bióloga.

Ela analisou a urina de 39 cortadores, durante 2002 e 2003, e comparou os dados com um grupo de 21 trabalhadores da zona urbana, utilizados como grupo-controle. “Verificamos que, no período da safra, o nível dos HPAs foi nove vezes maior do que na entressafra”, constatou. De acordo com a bióloga, a quantidade média destas substâncias, durante a colheita, foi de 0,31 micromol/mol de creatinina (medida usada para expressar a quantidade de HPAs excretadas, levando em consideração a creatinina, uma proteína presente na urina usada como marcador no estudo), sendo que o pico atingiu 2,71 micromol/mol. “Já na entressafra, a média ficou em 0,035, semelhante ao grupo-controle de trabalhadores da cidade, que foi de 0,041 micromol/mol de creatinina.”

Os testes sobre mutações genéticas também utilizaram a Salmonella typhimurium. “A urina dos cortadores de cana foi altamente tóxica para as bactérias utilizadas no teste, acabando por matá-las”, adverte Rosa Maria. Em função das mortes dos microrganismos, a bió-loga alerta que só foi possível detectar o efeito mutagênico das substâncias em três amostras. “Esse dado pode sugerir também efeitos prejudiciais para o ser humano, o que indica a necessidade de análises complementares em células dos próprios trabalhadores”, acrescenta.

Segundo a professora Nívea Tedeschi Conforti – que coordenou a pesquisa, ao lado da professora Cláudia Carareto, ambas do Ibilce –, os estudos apontam para os riscos que a exposição ambiental oferece para a saúde humana. “Porém, as conseqüências da exposição e o nível das substâncias no organismo dependem, e muito, do tipo de herança genética que cada um desses indivíduos possui”, afirma.

Como exemplo, Nívea cita os casos de pessoas que fumam e não morrem por causa dos efeitos diretos da nicotina, sendo que outros fumantes que apresentam o vício por apenas alguns anos acabam falecendo em função de seus efeitos. “Processos degenerativos, como o câncer, por exemplo, que pode advir dessa exposição, são extremamente complexos e dependem de muitos fatores, entre eles a interferência de outros tipos de exposição, como fumo, ingestão de bebidas alcoólicas, tipo de alimentação e estresse”, afirma.

Para Nívea, os resultados obtidos podem auxiliar na adoção de medidas preventivas, tanto no âmbito da saúde do trabalho como no de ambiente. “Uma delas poderia ser a utilização de máscaras e roupas especiais pelos trabalhadores e talvez a limitação do uso da queimada, próximo a regiões com grandes concentrações urbanas”, afirma.

A análise da exposição das pessoas que trabalham em canaviais também está nos planos de pesquisa do grupo coordenado por Mary no IQ/Araraquara, que há dez anos pesquisa o assunto. O objetivo é investigar com mais precisão a que níveis de concentração dos HPAs esses profissionais estão expostos em seu dia-a-dia. Mary salienta que, nos últimos dois anos, o estudo tem sido apoiado pela União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica). Ela enfatiza o perigo que correm principalmente os cortadores de cana. “Nos períodos das colheitas, entre sete e oito meses, eles enfrentam uma carga horária de mais de oito horas diárias de contato com a fuligem”, assinala.


Falta legislação específica
País não possui controle para emissão de HPAs

O marco mundial no estudo dos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), entre eles o benzo(a)pireno – a variedade mais estudada –, foi a constatação da alta incidência de câncer de escroto em crianças colocadas pelos pais na limpeza de chaminés na Inglaterra, por volta de 1950. Como elas se despiam para poder deslizar com maior facilidade, a pele mais sensível do corpo absorvia estas substâncias. A partir daí, várias leis de controle da emissão desses hidrocarbonetos foram implementadas na Europa e EUA.

No Brasil, segundo a pesquisadora Mary Rosa Marchi, não há ainda uma legislação específica, estadual ou federal, de controle da emissão das substâncias consideradas cancerígenas. “Os poliaromáticos não aparecem nas legislações ambientais de âmbito estadual e federal para controle da qualidade do ar”, diz a especialista. “É uma falha.” Para água, potável ou de mananciais, existe na legislação federal – estabelecida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) e Ministério da Saúde – uma exigência da monitoração da concentração de benzo(a)pireno, um dos 16 HPAs considerados prioritários pela agência americana de proteção ambiental.

Para o jurista e professor aposentado do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da UNESP, campus de Rio Claro, Paulo Affonso Leme Machado, autor do livro Direito Ambiental Brasileiro, atualmente em 12ª edição, a emissão de gases poluentes por queimada de cana poderia ser enquadrada no artigo 54 da Lei de Crimes Ambientais Brasileiros, de 1998. Neste caso, a legislação diz que “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana” pode acarretar penas de reclusão e multa.

Quanto à queima da cana, o governador Geraldo Alckmin sancionou o Decreto no 47.700, em 2003, que prevê a eliminação total dessa prática, por etapas, em canaviais de todo o Estado no prazo de 25 anos, a contar da data da lei, em áreas mecanizáveis com extensão superior a 150 hectares, com declividade inferior a 12%.

Fonte texto: http://www.unesp.br/aci/jornal/198/capa.php